A história de Moçambique é marcada por um fio condutor de resistência. Desde as antigas chefaturas [cargo, dignidade ou o local de trabalho de um chefe] do sul e do centro até às lutas do norte, os moçambicanos têm enfrentado sucessivas formas de dominação — política, econômica, cultural e militar — vindas de fora do seu território. Entre os episódios mais emblemáticos dessa longa trajetória estão o reinado e a queda de Gungunhana, a rebelião das populações do Vale do Zambeze (Bárué), o Massacre de Mueda, e a subsequente emergência da FRELIMO como movimento de libertação nacional.
Este artigo propõe-se a revisitar esses acontecimentos sob uma perspetiva histórica e científica, distinguindo o que é fato comprovado, hipótese interpretativa e tradição oral, sem perder de vista a complexidade social e cultural que moldou a resistência moçambicana.
Nota Introdutória à Série “Povos soberanos de África”
Os textos que compõem esta série são fruto de um extenso trabalho de pesquisa, reunindo informações de diversas fontes — algumas históricas e academicamente reconhecidas, outras baseadas em tradições orais que atravessaram gerações. O nosso objetivo é o de trazer a público uma leitura viva e acessível sobre personagens, acontecimentos e civilizações africanas que marcaram a história, tentando equilibrar o rigor científico com o respeito à memória ancestral.
Sabemos, no entanto, que a História nem sempre é exata: pode conter lacunas, interpretações distintas e até equívocos inevitáveis. É possível que certas passagens despertem sensibilidades ou contrariem visões patrióticas. Por isso, convidamos o leitor a caminhar conosco neste processo de redescoberta — e, sempre que encontrar algo que julgue impreciso, fora de contexto ou inapropriado, que nos diga. O diálogo é parte essencial desta jornada de conhecimento e reconstrução da nossa memória coletiva.
O Reino de Gaza e a figura de Gungunhana
Entre os séculos XIX e XX, o Reino de Gaza, fundado por Soshangane após a fragmentação do império zulu, consolidou-se no sul de Moçambique como uma potência militar e política. Gungunhana (ou Ngungunyane), seu neto, subiu ao trono em meados de 1884.
Segundo registros históricos, Gungunhana manteve uma administração centralizada e um exército disciplinado, sustentado por práticas militares herdadas dos zulus e adaptadas à realidade moçambicana. O seu reino abrangia vastas áreas do atual sul e centro de Moçambique, com sistemas de vassalagem, tributos e alianças que garantiam controle político e social.
Do ponto de vista cientificamente documentado, Gungunhana desenvolveu relações diplomáticas e comerciais com europeus, sobretudo portugueses, mas também com ingleses e bôeres. As fontes coloniais portuguesas retratam-no como um “déspota”, mas pesquisas modernas (como as de Newitt, 1995, e Liesegang, 1983) apontam que essa visão foi amplamente influenciada pela propaganda colonial, que procurava justificar a campanha militar que culminou com a sua captura em 1895, em Chaimite, pelo exército de Mouzinho de Albuquerque.
A tradição oral, porém, apresenta Gungunhana como um símbolo de resistência, astuto e diplomático, cuja derrota marcou o fim da soberania africana organizada no sul do país.

A Rebelião do Vale do Zambeze (Bárué)
Com o colapso do Reino de Gaza, o poder colonial português intensificou o controle sobre o centro do território. No entanto, o domínio europeu era ainda frágil. A região do Vale do Zambeze, habitada por diversos grupos chona e shona, conservava estruturas políticas locais e tradições guerreiras.
A Rebelião do Bárué, em 1917, é um exemplo notável desse espírito de resistência. As causas foram múltiplas: imposição de trabalho forçado (chibalo), cobrança de impostos e a violência administrativa portuguesa. A revolta, liderada por Kakombe, ganhou amplitude regional, mobilizando milhares de combatentes.
Estudos históricos (Pélissier, 1984; Isaacman, 1979) confirmam que, embora mal armados, os rebeldes conheciam profundamente o terreno e aplicaram estratégias de guerrilha eficazes. A repressão foi brutal, mas a insurreição deixou marcas profundas, revelando a tensão entre a economia extrativista colonial e as sociedades rurais africanas que se recusavam a perder a autonomia.

O Massacre de Mueda: o despertar da consciência nacional
Avançando para o século XX, após décadas de dominação colonial direta, o Massacre de Mueda, ocorrido em 16 de junho de 1960, é amplamente reconhecido como o catalisador da luta armada de libertação nacional.
Em Mueda, no norte de Moçambique, líderes locais organizaram uma manifestação pacífica exigindo melhores condições e o fim do trabalho forçado. As autoridades portuguesas responderam com fogo real, matando centenas de civis desarmados — números exatos variam entre as fontes, mas as estimativas vão de 200 a 600 mortos.
Os estudos de Mondlane (1969) e Hall (1990) interpretam o massacre como o ponto de viragem para a consciência nacionalista: o evento uniu diversas comunidades makonde, macua e yao em torno da ideia de uma libertação comum.
A tradição oral preservou memórias vívidas de Mueda, transmitidas em canções, lamentos e narrativas que reforçam o trauma coletivo e a necessidade da luta.
A FRELIMO e a luta de libertação
Fundada em 1962, na Tanzânia, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) surgiu como resultado da união de três movimentos nacionalistas — MANU, UDENAMO e UNAMI — e sob a liderança de Eduardo Mondlane, doutorado em Sociologia nos Estados Unidos.
Com o apoio da Organização de Unidade Africana (OUA) e de países como Tanzânia, Argélia e União Soviética, a FRELIMO iniciou, em 1964, a luta armada contra o regime colonial português.
As bases da FRELIMO combinavam o legado de resistência local (como Mueda e Bárué) com ideais modernos de autodeterminação e socialismo africano. A organização militarizou comunidades, criou escolas e centros de saúde nas zonas libertadas, e articulou uma política de igualdade de gênero que permitiu a participação ativa das mulheres no exército e na administração — uma revolução social que se diferenciava radicalmente do modelo europeu da época.
A guerra prolongou-se até 1974, quando o 25 de Abril, em Portugal, derrubou o regime salazarista e abriu o caminho para a independência de Moçambique em 1975.
Ciência, mito e memória
Os estudos históricos sobre esses eventos baseiam-se em fontes documentais coloniais, testemunhos orais e análises arqueológicas. No entanto, a memória coletiva moçambicana é inseparável das tradições orais — contos, canções, rituais e símbolos — que, embora não se enquadrem no método científico clássico, são fundamentais para compreender a dimensão cultural da resistência.
Assim, ao abordar figuras como Gungunhana ou eventos como Mueda, é importante reconhecer que o que a ciência não pode comprovar, a tradição preserva como verdade simbólica.
Conclusão
Da coroa de Gaza às armas da FRELIMO, Moçambique construiu-se sobre uma longa história de resistência. Gungunhana, Kakombe, as vítimas de Mueda e os combatentes da libertação representam, em diferentes épocas, a mesma busca por dignidade e soberania.
A compreensão desse passado — entre fatos, hipóteses e mitos — é essencial não apenas para celebrar heróis, mas para entender as raízes da identidade moçambicana contemporânea.
Referências Bibliográficas
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HALL, Margaret. The Mozambique Liberation Struggle: A Critical Analysis. Longman, 1990.
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ISAACMAN, Allen. Mozambique: The Africanization of a European Institution – The Zambezi Prazos, 1750–1902. University of Wisconsin Press, 1979.
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LIESEGANG, Gerhard. The History of the Gaza Nguni. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1983.
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MONDLANE, Eduardo. The Struggle for Mozambique. Penguin Books, 1969.
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NEWITT, Malyn. A History of Mozambique. Indiana University Press, 1995.
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PÉLISSIER, René. História das Campanhas de Moçambique: 1895–1918. Lisboa: Estampa, 1984.
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SERRA, Carlos. Mueda, Massacre e Memória. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 2000.
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