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V - Os Reinos que Moldaram o Território de Moçambique
Entre a História, a Tradição e a Ciência
Por António Cunha
Publicado em 14/11/2025 08:20
História, Filosofia & Religião

  

Um território de antigas rotas e povos em movimento

O que hoje chamamos de Moçambique é resultado de milênios de encontros, migrações, trocas e confrontos. Muito antes da chegada dos europeus, esta faixa de terra banhada pelo Índico era o lar de povos que formaram complexas civilizações, com estruturas sociais e políticas próprias, tecnologias agrícolas e metalúrgicas avançadas e redes comerciais que se estendiam por vastas regiões do continente africano.

Segundo os estudos arqueológicos e linguísticos — como os de Jan Vansina (1990) e David Birmingham (1995) —, as populações que deram origem aos moçambicanos atuais são descendentes de povos bantu, que migraram do interior da África Central para o sul e o leste do continente entre 1000 a.C. e 500 d.C.. Essas migrações trouxeram consigo novas línguas, técnicas agrícolas (como o cultivo do milhete, sorgo e banana) e a metalurgia do ferro — um avanço que transformou profundamente o modo de vida das comunidades locais.


Nota Introdutória à Série “Povos soberanos de África”

Os textos que compõem esta série são fruto de um extenso trabalho de pesquisa, reunindo informações de diversas fontes — algumas históricas e academicamente reconhecidas, outras baseadas em tradições orais que atravessaram gerações. O nosso objetivo é o de trazer a público uma leitura viva e acessível sobre personagens, acontecimentos e civilizações africanas que marcaram a história, tentando equilibrar o rigor científico com o respeito à memória ancestral.

Sabemos, no entanto, que a História nem sempre é exata: pode conter lacunas, interpretações distintas e até equívocos inevitáveis. É possível que certas passagens despertem sensibilidades ou contrariem visões patrióticas. Por isso, convidamos o leitor a caminhar conosco neste processo de redescoberta — e, sempre que encontrar algo que julgue impreciso, fora de contexto ou inapropriado, que nos diga. O diálogo é parte essencial desta jornada de conhecimento e reconstrução da nossa memória coletiva.

As primeiras sociedades e o florescimento dos reinos

Entre os séculos XIII e XVI, consolidaram-se no território moçambicano diversos reinos e chefaturas [chefatura" refere-se à dignidade ou cargo de chefe e também ao local ou repartição onde um chefe exerce as suas funções] independentes. Entre os mais conhecidos, destacam-se o Império de Mwenemutapa (ou Monomotapa), o Reino de Manica, o Reino de Maravi e o Reino de Gaza, cada um com características sociais e políticas próprias.

O Império de Mwenemutapa, localizado na região norte e central (atuais províncias de Tete, Sofala e Zambézia), foi o mais poderoso. De acordo com fontes históricas (Beach, 1980; Newitt, 1995), o reino se formou a partir da expansão do Grande Zimbábue, um dos centros urbanos mais impressionantes da África pré-colonial, cuja arquitetura em pedra ainda hoje desafia explicações. Os reis mutapa controlavam extensas rotas comerciais que ligavam o interior — rico em ouro e marfim — ao litoral, por onde os produtos eram trocados com mercadores árabes e indianos.

As escavações e os registros arqueológicos confirmam a sofisticação econômica e cultural dessas civilizações: o uso de moedas de ouro, a produção de tecidos, a organização militar e o domínio de técnicas agrícolas sustentáveis.


Sociedade e política: poder, linhagem e religião

As sociedades moçambicanas pré-coloniais eram, em grande parte, organizadas em linhagens e chefaturas. A autoridade era transmitida por via matrilinear ou patrilinear, dependendo do grupo étnico, e o poder político estava frequentemente associado ao carisma espiritual e à mediação religiosa. O rei — ou chefe — era visto como o elo entre os vivos e os antepassados, o que legitimava a sua posição de liderança.

Religiões baseadas no culto aos antepassados conviviam com práticas animistas [crenças e rituais que consideram que todos os seres (vivos ou inanimados) e fenómenos naturais possuem uma alma ou espírito] e com um profundo respeito pela natureza. Segundo estudos etnográficos recentes (Macamo, 2006), essas crenças estruturavam as relações de poder e solidariedade social, orientando decisões políticas e rituais comunitários.

Militarmente, os reinos moçambicanos possuíam forças organizadas, compostas por guerreiros treinados e disciplinados. No caso do Reino de Gaza, fundado no século XIX por Soshangane, as campanhas militares tornaram-se um instrumento de consolidação do poder. O império chegou a dominar grande parte do sul de Moçambique, impondo tributos e alianças estratégicas sobre povos vizinhos — uma forma de organização comparável, na escala africana, aos grandes reinos europeus da mesma época.


Os primeiros contatos com os europeus

Os portugueses chegaram à costa de Moçambique no final do século XV. Em 1498, Vasco da Gama fez escala na Ilha de Moçambique, marco do início de uma relação que misturaria comércio, diplomacia e conflito.

Inicialmente, os contatos foram comerciais: os portugueses buscavam ouro, marfim e escravos, oferecendo em troca tecidos, vidro, pólvora e armas. O comércio era intermediado por mercadores suahilis e árabes, já bem estabelecidos na costa desde o século IX. As cidades costeiras — Sofala, Quelimane e Ilha de Moçambique — tornaram-se polos de encontro entre culturas, línguas e religiões.

Com o tempo, no entanto, os interesses comerciais transformaram-se em ambições políticas e religiosas. A fundação de feitorias fortificadas e a conversão de chefes locais ao cristianismo intensificaram as disputas internas. A presença portuguesa desestabilizou antigas alianças e introduziu uma nova lógica de poder baseada no domínio militar e econômico.


Agricultura, comércio e desenvolvimento tecnológico

A agricultura sempre foi a base da economia moçambicana. Milho, feijão, sorgo, amendoim e mandioca garantiam a subsistência e alimentavam o comércio interno. A introdução de novas culturas pelos árabes e europeus — como o coco, a cana-de-açúcar e o arroz — diversificou as práticas agrícolas, embora também tenha aumentado a dependência de certas regiões costeiras.

O comércio teve papel central na estrutura social. Mercadorias locais eram trocadas por produtos estrangeiros, e o ouro de Sofala tornou-se um dos mais cobiçados do Oceano Índico. Estudos científicos (Alpers, 1975; Newitt, 1995) confirmam que Moçambique era parte de uma vasta rede comercial que incluía a Índia, o Golfo Pérsico e o Sudeste Asiático — muito antes da colonização formal.


Tradição oral, mito e ciência: o desafio da interpretação

Boa parte da história moçambicana foi transmitida oralmente, através de contadores de histórias, griots [contadores de histórias, músicos e guardiões da tradição oral na África central, sendo responsáveis por preservar e transmitir o conhecimento ancestral, as genealogias, as histórias e os mitos de cada povo] e anciãos. Essa tradição preservou nomes, feitos e genealogias, mas nem sempre permite uma datação precisa ou comprovação factual.

Os historiadores contemporâneos — como Joseph Miller e Allen Isaacman — têm defendido uma abordagem interdisciplinar, combinando arqueologia, linguística e antropologia para reconstruir uma narrativa mais equilibrada. Assim, episódios como a origem do nome “Moçambique” (supostamente derivado do xeque Muça Al-Bique, governante árabe da Ilha de Moçambique) ou as genealogias dos reis mutapa são interpretados à luz tanto da tradição oral quanto da documentação escrita.


Conclusão

A história civilizacional do território moçambicano é uma tapeçaria de migrações, reinos, lutas e encontros. Muito antes da colonização, os povos desta região já dominavam técnicas agrícolas e metalúrgicas, articulavam redes de comércio continental e marítimo, e construíam sociedades complexas e organizadas.

Reconhecer essa herança é essencial não apenas para compreender o passado, mas para valorizar a identidade e a resiliência dos povos moçambicanos. Entre o mito e a ciência, entre a oralidade e a escrita, o que permanece é o testemunho de uma civilização viva — que resistiu, adaptou-se e continua a inspirar.


Referências Bibliográficas

 ALPERS, Edward. Ivory and Slaves in East Central Africa: Changing Patterns of International Trade to the Later Nineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1975.
BEACH, David. The Shona and Zimbabwe, 900–1850: An Outline of Shona History. London: Heinemann, 1980.
BIRMINGHAM, David. A Concise History of Portugal and Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
ISAACMAN, Allen. Mozambique: The Africanization of a European Institution. Madison: University of Wisconsin Press, 1972.
MACAMO, Elísio. Reflexões sobre a tradição e a modernidade em África. Maputo: CEA-UEM, 2006.
MILLER, Joseph C. Kings and Kinsmen: Early Mbundu States in Angola. Oxford: Clarendon Press, 1976.
NEWITT, Malyn. A History of Mozambique. London: Hurst & Company, 1995.
VANSINA, Jan. Paths in the Rainforests: Toward a History of Political Tradition in Equatorial Africa. Madison: University of Wisconsin Press, 1990.

 


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