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XX - Crise, Coragem e Ciência
Como Portugal Ascendeu das Ruínas de 1383 à Liderança Científica e Marítima Mundial”
Por António Cunha
Publicado em 18/12/2025 06:30
LUSOFONIA: História e Personagens

Quando o outono de 1383 caiu sobre o reino de Portugal, poucos imaginariam que aquele pequeno território periférico, espremido entre Castela e o Atlântico, atravessaria uma encruzilhada histórica capaz de redefinir não apenas o seu destino, mas o mapa mental e geográfico do mundo. A morte de D. Fernando, último rei da dinastia de Borgonha, deixou o país suspenso sobre um abismo político. Para uns, tratava-se apenas de mais uma crise dinástica; para outros, foi o início de uma revolução profundamente social, urbana e cultural. No centro desse turbilhão, Lisboa tornou-se palco de um dos momentos mais dramáticos e decisivos da história europeia.

 

 

A crise de 1383–1385 constitui um dos momentos mais decisivos da história de Portugal. Para muitos historiadores, trata-se do verdadeiro ponto de inflexão que permitiu ao país transformar-se, em menos de um século, de um território periférico e pobre da Península Ibérica numa potência marítima, científica e comercial de escala intercontinental.
O período conjuga elementos políticos, sociais, económicos, diplomáticos, militares e culturais, num conjunto complexo que exige análise detalhada e interdisciplinar.


Nota Introdutória à Série “Povos soberanos Lusófonos

Os textos que compõem esta série são fruto de um extenso trabalho de pesquisa, reunindo informações de diversas fontes — algumas históricas e academicamente reconhecidas, outras baseadas em tradições orais que atravessaram gerações. O nosso objetivo é o de trazer a público uma leitura viva e acessível sobre personagens, acontecimentos e civilizações que marcaram a história, tentando equilibrar o rigor científico com o respeito à memória ancestral.

Sabemos, no entanto, que a História nem sempre é exata: pode conter lacunas, interpretações distintas e até equívocos inevitáveis. É possível que certas passagens despertem sensibilidades ou contrariem visões patrióticas. Por isso, convidamos o leitor a caminhar conosco neste processo de redescoberta — e, sempre que encontrar algo que julgue impreciso, fora de contexto ou inapropriado, que nos diga. O diálogo é parte essencial desta jornada de conhecimento e reconstrução da nossa memória coletiva. 


 

O Reino de Portugal à Beira do Colapso: 1383

Na alvorada da crise, Portugal era pobre, rural e desigual. A economia assentava numa agricultura frágil, ainda marcada pelas cicatrizes da peste negra e pelas tensões entre grandes senhores, ordens militares e concelhos. O comércio marítimo existia, mas era tímido; as artes e as técnicas ainda não tinham florescido; as cidades eram poucas e pequenas.

Dependência cerealífera externa

Portugal não produzia cereais suficientes para abastecer o reino. As grandes secas de 1371–1373 e 1377 agravaram a escassez. A dependência da importação — sobretudo de Castela — colocava a Coroa numa posição vulnerável.

Impacto da Peste Negra (1348–1350)

A peste reduziu a população em cerca de um terço, provocando:

  • colapso agrícola parcial,
  • falta de mão de obra,
  • aumento dos salários,
  • conflitos entre proprietários rurais (nobreza) e trabalhadores.

Conflito económico entre grupos sociais

A burguesia urbana portuguesa (Lisboa, Porto, Santarém) defendia:

  • comércio marítimo,
  • autonomia municipal,
  • redução do poder castelhano sobre o país.

Em oposição, parte da alta nobreza dependia de rendas agrícolas e alianças político-matrimoniais com Castela.

 

Comparação com Outros Países Europeus (1380s)

Portugal enfrentava dificuldades, mas o contexto europeu também era turbulento.

Comparação Económica

País

Situação Económica

França

Devastada pela Guerra dos Cem Anos; fome e peste.

Inglaterra

Crise agrícola, revoltas camponesas (1381).

Castela

Crescimento demográfico, mas instabilidade sucessória.

Aragão

Comércio mediterrânico forte; relativa estabilidade.

Portugal

Mais pobre, dependente de importações, mas com potencial marítimo.

Comparação Política

  • França: monarquia forte mas em crise militar.
  • Inglaterra: Parlamento com crescente influência.
  • Castela: guerras civis dinásticas.
  • Portugal: monarquia frágil, corte dividida, dependente da diplomacia externa.

5.3. Comparação Social

  • As tensões entre nobres e burgueses existiam em todos os reinos.
  • Portugal tinha uma burguesia marítima muito mais influente relativamente ao tamanho do reino, preparando o terreno para o apoio decisivo ao Mestre de Avis.

 


 

Características Políticas e Diplomáticas

O reinado de D. Fernando I

O rei, inteligente e culto, mas impulsivo, desenvolveu:

  • três guerras com Castela,
  • políticas fiscais pesadas,
  • alianças externas contraditórias (Inglaterra, depois França, depois Inglaterra novamente).

 

A instabilidade diplomática fragilizou a economia e desgastou a população.

No entanto, havia algo de único: uma burguesia urbana que crescia rapidamente e que aprendia, com apurada sensibilidade, que a autonomia política de Portugal era também a sua própria sobrevivência económica. Castela, maior e militarmente superior, exercia pressão constante — e a rainha regente D. Leonor Teles, vista por muitos como manipuladora e prisioneira da influência castelhana, tornou-se símbolo de tudo o que ameaçava a autonomia nacional.

E é então que surge o nome que mudaria o curso dos acontecimentos: o Conde de Andeiro. Galã, cortesão experiente e politicamente ambicioso, tornou-se amante (quase oficialmente reconhecido) de D. Leonor Teles. Para os cronistas, foi um escândalo político de proporções europeias; para o povo, uma afronta.

Todos estes ingredientes, incluindo o choque entre um modelo comercial-atlântico e um modelo agrário-feudal são os ingredientes para a crise.


 

O Assassinato que Mudou Portugal

O Mestre de Avis — meio-irmão de D. Fernando, filho ilegítimo de D. Pedro I e da célebre D. Inês de Castro — era um homem de temperamento reservado, mas inteligência política aguçada. Formado nas regras da cavalaria, criado entre monges-guerreiros e diplomatas, tinha um pé no mundo espiritual e outro no pragmatismo das armas.

O seu gesto decisivo ocorreu numa manhã fria de dezembro de 1383: ao assassinar o Conde de Andeiro no Paço da Rainha, o Mestre não tirou apenas a vida de um favorito régio; derrubou toda a arquitectura política castelhana que sustentava D. Leonor. A cidade levantou-se com ele.

Lisboa tornava-se, pela primeira vez, palco de uma revolução urbana.

Naquele momento, sem coroa, sem legitimidade e sem um único soldado estrangeiro ao seu lado, nascia a resistência portuguesa.


 

A Guerra da Independência: De Lisboa a Aljubarrota

O cerco de Lisboa de 1384 foi uma epopeia de resistência. Doentes, famintos, mas determinados, os lisboetas resistiram durante meses ao maior exército castelhano da época. No interior dos muros, organizava-se a defesa de maneira exemplar; a peste devastava ambos os lados; e, nos intervalos dos combates, padres e mesteirais repetiam sermões e palavras de ordem que hoje chamaríamos “mobilização social”.

Ao lado do Mestre, surge uma das figuras mais impressionantes da história militar europeia:
D. Nuno Álvares Pereira, o Condestável. Jovem, estratega genial, profundamente devoto, transformou-se rapidamente na “espada de Portugal”.

As vitórias de Atoleiros, Trancoso e, sobretudo, Aljubarrota (1385) — onde um exército português muito inferior aniquilou a poderosa hoste castelhana — consolidaram a independência. Em Aljubarrota, inovação e audácia militar encontraram o seu expoente máximo: estacas inclinadas, táticas inglesas, cavalaria desmontada e um terreno escolhido ao milímetro.

Poucos anos depois, a batalha de Valverde confirmou que o milagre não fora acidental.


 

A Nova Dinastia e o Horizonte Azul

Com a aclamação do Mestre de Avis como D. João I, Portugal entrava numa nova era. Ao seu lado, a rainha D. Filipa de Lencastre, mulher culta e estratega, introduziu no reino uma educação intelectual inspirada na corte inglesa. Dos seus filhos — a célebre “Ínclita Geração” — destacam-se três nomes que marcaram a transição decisiva:

  • Infante D. Duarte, o filósofo-rei;
  • Infante D. Pedro, o viajante e estadista;
  • Infante D. Henrique, o arquiteto da expansão marítima.

Sob esta família singular, Portugal não apenas se reconstruiu: reinventou-se.


A Crise de Tânger: O Preço da Ambição

Com D. Duarte, a primeira grande aposta expansionista continental falhou dramaticamente. A expedição de Tânger terminou em desastre, e o herdeiro D. Fernando ficou cativo, morrendo na prisão. Foi um trauma nacional profundo — e um lembrete cruel das fragilidades portuguesas.

Mas o país aprendeu. Com a regência sábia do Infante D. Pedro e, mais tarde, o reinado jovem e impetuoso de D. Afonso V, a sociedade portuguesa passou por mudanças: aumento do comércio, crescimento das cidades, difusão de conhecimento técnico e fortalecimento das elites mercantis.


O Saber que Mudou o Mundo

Não foi apenas coragem que levou os portugueses além do Bojador — foi ciência.

Durante décadas, matemáticos, astrónomos, pilotos, cartógrafos, cosmógrafos e mestres de construção naval aperfeiçoaram métodos, instrumentos e cálculos:

  • A caravela, leve e veloz, capaz de bolinar.
  • A cartografia portulana, precisa e adaptada a costas desconhecidas.
  • O astrolábio e o quadrante, afinados para latitudes oceânicas.
  • O conhecimento das correntes e ventos, que transformou o retorno do mar em ciência experimental.
  • O conceito da “volta do mar largo”, verdadeira revolução da navegação atlântica.

É assim que Portugal passa, entre 1383 e 1460, de reino pobre e isolado a laboratório científico do Atlântico.


Bartolomeu Dias e o Momento que Mudou a História Global

Em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo das Tormentas — futuro Cabo da Boa Esperança. O mundo, literalmente, abre-se.

A viagem não foi acaso, nem milagre. Foi o culminar de meio século de estudos, erros, tentativas, observação das marés, correntes, ventos, rotas migratórias de aves e padrões climáticos.

Quando Dias regressou a Lisboa, já não havia retorno possível: Portugal tinha descoberto a chave para a globalização.


De Porto Periférico a Potência Científica e Marítima

No virar do século XV para o XVI, Lisboa transformou-se num centro cosmopolita. Gente de todas as partes — judeus, italianos, flamengos, ingleses, árabes, africanos, asiáticos — trocava saberes, bens, moedas e técnicas.

A ciência florescia; a cartografia portuguesa tornava-se referência mundial; matemáticos como Pedro Nunes criavam conceitos que ainda hoje estudamos; e o Atlântico deixava de ser o limite para se tornar a estrada do império.

Em 1500, com Cabral no Brasil e Vasco da Gama na Índia, Portugal deixava de ser um pequeno reino ibérico: passava a ser uma potência cultural, científica e económica global.


Um País Nascido da Crise, Feito de Ciência e Sustentado pela Coragem

A história portuguesa entre 1383 e 1500 é uma das mais improváveis revoluções da história humana. Um país pobre, dividido, ameaçado de absorção por Castela, rasgou os limites da sua geografia e da sua própria imaginação.

A crise gerou inovação.
A ameaça estrangeira gerou unidade.
A necessidade gerou ciência.
E a ciência abriu o mundo.

Esta é a história de como Portugal, do caos e da coragem, do sangue de Aljubarrota e dos cálculos dos cosmógrafos, ergueu um futuro que redesenharia o planeta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Luís de. Os Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Editorial Presença, 1990.

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DIAS, João José Alves. A Crise de 1383–1385. Lisboa: Editorial Estampa, 1996.

GODINHO, Vitorino Magalhães. A Economia dos Descobrimentos Henriquinos. Lisboa: Editorial Presença, 1981.

MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Vol. III–V. Lisboa: Editorial Estampa, 1993–1995.

NOGUEIRA, Bernardo Vasconcelos e Sousa. A Casa da Índia. Lisboa: CNCDP, 1992.

PIRES, Hélio. A Batalha de Aljubarrota. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2014.

RADETZKY, Manuel. Navegação e Cartografia nos Séculos XV e XVI. Coimbra: Minerva, 2002.

SARAIVA, António José. História da Cultura em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1995.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. The Portuguese Empire in Asia. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994.

VILLAR, Pierre. A Guerra dos Cem Anos. Lisboa: Editorial Presença, 1986.

 


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