Offline
DÊ O PLAY
Da Ibéria Romana até ao Al-Andalus
O choque estratégico e a organização territorial com Roma à ruptura provocada exércitos islâmicos
Por António Cunha
Publicado em 05/12/2025 09:30
LUSOFONIA: História e Personagens

A CHEGADA DE ROMA: CONQUISTA, CHOQUE ESTRATÉGICO E REORGANIZAÇÃO TERRITORIAL

Quando Roma voltou o olhar para a Península Ibérica, no século III a.C., não encontrou um território vazio ou culturalmente homogéneo. Pelo contrário, enfrentou um mosaico de povos — célticos, íberos, túrdulos, lusitanos e outros — cada qual com alianças locais, rivalidades e formas de organização política próprias. Contudo, para a emergente potência mediterrânica, a Ibéria possuía um valor extraordinário: recursos minerais abundantes, posição estratégica face ao Atlântico e rotas terrestres aptas a ligar o Mediterrâneo ao Mar Exterior.

A conquista romana foi tudo menos imediata. No território que corresponde hoje a Portugal, o avanço foi particularmente difícil. A geografia acidentada, as táticas de guerrilha e a forte coesão das populações montanhosas criaram obstáculos sérios às legiões. Surge então a figura lendária — e historicamente discutida — de Viriato, o líder lusitano que uniu diversas tribos num movimento de resistência (155–139 a.C.).

Os cronistas romanos descrevem-no com um misto de fascínio e desconforto: astuto, conhecedor da terra, imprevisível. O que se sabe com segurança é que a sua resistência prolongou a conquista romana por quase duas décadas, obrigando Roma a mobilizar governadores, legiões experientes e estratégias de negociação combinadas com traição. A morte de Viriato, às mãos de emissários subornados por Roma, assinalou a fase terminal da resistência lusitana organizada.

A integração do território no mundo romano foi gradual, consolidando-se apenas no início do século I a.C. com a criação da província da Lusitânia, com capital em Emerita Augusta (atual Mérida). A porção noroeste integrou a província Tarraconense, refletindo a complexidade cultural e política da região.

Nota Introdutória à Série “Povos soberanos Lusófonos

Os textos que compõem esta série são fruto de um extenso trabalho de pesquisa, reunindo informações de diversas fontes — algumas históricas e academicamente reconhecidas, outras baseadas em tradições orais que atravessaram gerações. O nosso objetivo é o de trazer a público uma leitura viva e acessível sobre personagens, acontecimentos e civilizações que marcaram a história, tentando equilibrar o rigor científico com o respeito à memória ancestral.

Sabemos, no entanto, que a História nem sempre é exata: pode conter lacunas, interpretações distintas e até equívocos inevitáveis. É possível que certas passagens despertem sensibilidades ou contrariem visões patrióticas. Por isso, convidamos o leitor a caminhar conosco neste processo de redescoberta — e, sempre que encontrar algo que julgue impreciso, fora de contexto ou inapropriado, que nos diga. O diálogo é parte essencial desta jornada de conhecimento e reconstrução da nossa memória coletiva. 


ROMANIZAÇÃO: UMA TRANSFORMAÇÃO LENTA, PROFUNDA E IRREVERSÍVEL

A romanização não foi um processo uniforme nem imposto de forma linear. Misturou imposição militar com atração cultural, convivência e adaptação mútua. A maior parte das populações não “deixou de ser” aquilo que era — integraram novos elementos, reinterpretaram práticas ancestrais e produziram culturas híbridas.

As cidades como instrumentos de integração

Roma urbanizou o território com pragmatismo. Criou ou ampliou centros urbanos como:

  • Olisipo (Lisboa), porto estratégico voltado para o comércio atlântico.

  • Bracara Augusta (Braga), futura capital do Conventus Bracarensis, centro político-administrativo do Noroeste.

  • Conimbriga, que se tornaria símbolo da prosperidade romana em solo português.

Estas cidades não eram apenas espaços de residência; eram motores de romanização. Possuíam fóruns, termas, teatros, templos, redes de vias pavimentadas, aquedutos e sistemas de esgoto que alteraram profundamente o quotidiano. A reorganização territorial incluía vici, villae e importantes centros mineiros (como Três Minas e Aljustrel).

Agricultura, tecnologia e comércio

A economia rural expandiu-se graças à introdução de novas técnicas e ao aperfeiçoamento de práticas existentes:

  • Arados mais eficientes,

  • Sistemas de irrigação,

  • Moinhos hidráulicos,

  • Técnicas avançadas de vitivinicultura e oleicultura.

O comércio floresceu. Olisipo exportava sal, conservas de peixe e produtos agrícolas; outras regiões forneciam metais, couro e têxteis. A integração no vasto mercado romano acelerou a circulação de bens, pessoas e ideias.

Sociedade e cultura: entre a tradição e a adopção de Roma

A romanização manifestou-se no direito (com a eventual extensão da cidadania), na língua (transformação gradual do latim vulgar nas línguas românicas) e nas religiões. Divindades locais não desapareceram; muitas foram reinterpretadas sob formas romanas, prática conhecida por interpretatio romana.

Os lugares sagrados pré-romanos foram frequentemente integrados no novo sistema religioso — um exemplo de adaptação que caracteriza este período.


MIGRAÇÕES E DINÂMICAS HUMANAS NA ÉPOCA ROMANA

Apesar do estereótipo de uma romanização “vinda de fora”, a maioria das comunidades manteve-se local. Contudo, houve migrações significativas:

  • Veteranos romanos instalados em colónias rurais.

  • Mercadores e artesãos itálicos, africanos e orientais, atraídos pelo florescimento económico.

  • Movimentação interna de populações indígenas, algumas deslocadas pela guerra, outras pela integração em sistemas de produção.

Estas dinâmicas criaram sociedades mestiças no sentido cultural, onde o latim convivia com línguas locais, e tradições romanas coexistiam com práticas ancestrais.


A CRISE DO IMPÉRIO E O FIM DA ADMINISTRAÇÃO ROMANA NA PENÍNSULA

Os séculos III e IV d.C. trouxeram instabilidade. A pressão externa, a crise económica e o declínio da autoridade imperial refletiram-se na Ibéria:

  • Fortificações urbanas foram reforçadas;

  • A moeda sofreu desvalorização;

  • O cristianismo espalhou-se, alterando profundamente estruturas sociais e culturais.

No início do século V d.C., povos germânicos — vândalos, suevos e alanos — atravessaram o Reno e, posteriormente, os Pirenéus. Findava a estabilidade romana.

O reino suevo: o primeiro reino europeu baseado no território português

Os suevos estabeleceram-se no Noroeste, criando um reino com centro em Bracara (Braga). Embora frequentemente pouco valorizado, este reino (411–585 d.C.) representou:

  • A primeira entidade política estável na região após Roma;

  • Um período de coexistência entre populações locais e elites guerreiras germânicas;

  • A continuidade de estruturas administrativas romanas, adaptadas à nova realidade.

O cristianismo desempenhou papel central, especialmente após a conversão sueva ao catolicismo, consolidando ligações culturais com o restante mundo ibérico.


UM LEGADO INDELECÍVEL

A herança romana é, talvez, a mais persistente de todas as camadas históricas que moldaram Portugal. Da língua portuguesa ao traçado de antigas vias, das práticas agrícolas às primeiras formas de administração, o período romano estruturou as bases materiais e imateriais sobre as quais outras culturas se construíram.

Roma não apagou os povos indígenas, nem estes permaneceram imutáveis. O resultado foi uma síntese duradoura, que atravessará as épocas seguintes — visigótica, islâmica e medieval cristã — até à formação definitiva do reino de Portugal.


O OCASO ROMANO E A REORGANIZAÇÃO DA PENÍNSULA (SÉCULOS V–VI)

Com o desmoronar efetivo da autoridade romana na Península Ibérica no início do século V d.C., abriu-se um período de transição marcado por redistribuições de poder entre vários povos germânicos que haviam penetrado o território. Não se tratou de uma queda súbita, mas de um processo gradual, em que estruturas administrativas romanas continuaram a existir durante décadas, ainda que sob novos protagonistas.

Entre estes, os suevos distinguiram-se ao estabelecer no Noroeste peninsular — correspondente à atual Galiza e Norte de Portugal — o primeiro reino estável pós-romano da Europa Ocidental (411–585). A sua escolha de Bracara Augusta (hoje Braga) como capital demonstra a continuidade do prestígio urbano romano e das suas infraestruturas civis e religiosas.

Ao contrário da imagem popular de invasores bárbaros que impuseram uma nova ordem, os suevos foram, na realidade, uma minoria governante que se inseriu sobre uma população largamente romanizada, adotando gradualmente práticas administrativas e culturais locais. A conversão dos suevos ao catolicismo — concluída durante o reinado de Teodomiro (†570) — desempenhou papel determinante na integração com as elites hispano-romanas e consolidou uma nova identidade híbrida.

No entanto, a ascensão do Reino visigótico de Toledo ao longo do século VI trouxe inevitável tensão. Após décadas de alianças, conflitos e negociações, os visigodos acabariam por absorver o reino suevo em 585, durante o reinado de Leovigildo, integrando o Noroeste na órbita política de Toledo.


O PERÍODO VISIGÓTICO NA REGIÃO (SÉCULOS VI–VIII)

Sob domínio visigótico, a Península Ibérica permaneceu uma sociedade marcadamente rural, com cidades antigas como Braga, Porto, Coimbra e Lisboa a viverem simultaneamente continuidade e declínio. A administração territorial manteve elementos romanos — como a divisão eclesiástica e parte das estruturas de impostos — mas com crescente domínio de uma aristocracia guerreira visigótica que detinha o poder militar e fiscal.

Sociedade e economia

As terras agrícolas tornaram-se a base da riqueza. As elites hispano-romanas e visigóticas competiam pelo controlo destas grandes propriedades, enquanto camponeses livres, colonos e servos trabalhavam as terras sob contratos que podiam combinar obrigações económicas e militares.

A Igreja Católica adquiria crescente influência política e cultural. Os Concílios de Toledo, reunindo bispos e nobres, regulavam não apenas questões religiosas, mas também leis civis, sucessões régias e tributação. Não obstante, o reino visigótico enfrentava instabilidade interna, marcada por sucessões frequentemente contestadas e conflitos entre facções aristocráticas.

Identidade e tensões internas

Embora a cultura romana permanecesse base normativa, a influência germânica introduziu novas formas de organização militar e jurídica. Por outro lado, tensões religiosas persistiam, sobretudo com comunidades judaicas, frequentemente alvo de políticas discriminatórias, que se agravaram no século VII.

A sociedade visigótica, embora rica em diversidade cultural, era frágil politicamente. Essa fragilidade selaria o destino do reino perante um novo poder que chegava do sul.


O ANO 711: A CHEGADA DO ISLÃO E A QUEDA DO REINO VISIGÓTICO

A entrada dos exércitos islâmicos — compostos sobretudo por berberes norte-africanos, liderados pelo general Tariq ibn Ziyad, sob autoridade do governador omíada do Magrebe — marcou uma das mais profundas rupturas da história peninsular.

A Batalha de Guadalete (711), cujo contorno concreto permanece envolto em debate historiográfico, resultou na derrota das forças do rei visigótico Roderico. Quer tenha sido uma batalha campal decisiva ou um episódio amplificado posteriormente, o facto é que o reino visigótico se desagregou rapidamente. Facções internas, rivalidades aristocráticas e o descontentamento de parte das elites facilitaram a incorporação da Península no mundo islâmico.


NASCIMENTO DE AL-ANDALUS: A PENÍNSULA COMO PONTE ENTRE MUNDOS (SÉCULOS VIII–XI)

A conquista muçulmana não foi apenas uma substituição de governantes; inaugurou uma nova civilização no território. O nome al-Andalus designou, desde então, as terras ibéricas sob domínio islâmico. A região que corresponde hoje a Portugal integrou-se de forma significativa neste sistema, sobretudo no sul e centro-norte.

Uma sociedade plural

Durante os períodos omíada e, posteriormente, do Califado de Córdova, al-Andalus tornou-se uma das sociedades mais culturalmente vibrantes da Europa medieval. A coexistência de muçulmanos (árabes e berberes), cristãos moçárabes e judeus originou um ambiente de trocas linguísticas, científicas e comerciais sem paralelo no continente.

Nas principais cidades do atual território português — como Beja, Évora, Lisboa, Coimbra e Silves — floresceram mercados, oficinas artesanais, sistemas de rega avançados (qanats e noras), produção têxtil e cerâmica de grande qualidade.

O sul como centro de inovação agrícola e económica

No Algarve e no Alentejo, os muçulmanos introduziram técnicas agrícolas revolucionárias:

  • Novos sistemas hidráulicos,

  • Cultivo de citrinos, arroz, açafrão, amendoeiras, figueiras,

  • Rotação de culturas adaptadas ao clima mediterrânico.

Estas práticas transformaram a paisagem rural portuguesa, muitas das quais perduraram mesmo após a Reconquista.

O poder político andalusino e os reinos de taifas

Entre os séculos VIII e XI, al-Andalus conheceu várias fases:

  1. Província dependente de Damasco, após a conquista (711–756)

  2. Emirado Independente de Córdova (756–929), sob a dinastia omíada refugiada

  3. Califado de Córdova (929–1031), uma potência mundial

  4. Fragmentação em Taifas (século XI), com estados independentes em Lisboa, Santarém, Badajoz, Silves, etc.

A Taifa de Badajoz, em especial, controlou grande parte do território português durante longos períodos, competindo por influência com as taifas de Sevilha, Toledo e Granada.


SOCIEDADE, IDENTIDADE E O NASCIMENTO DAS FRONTEIRAS MEDIEVAIS PORTUGUESAS

O mundo islâmico na Península não era um bloco monolítico. Havia tensões constantes entre árabes (minoritários, mas elites políticas), berberes (muito mais numerosos), muçulmanos ibéricos convertidos (muwalladun) e comunidades cristãs.

Ao mesmo tempo, no norte montanhoso da Península, zonas que não ficaram sob controlo muçulmano — Astúrias, depois Leão, Castela e Navarra — tornaram-se núcleos resistentes e germes dos futuros reinos cristãos ibéricos.

É nas zonas entre Douro e Minho que se consolidam pequenas comunidades guerreiras cristãs, ainda romanizadas, que participarão séculos mais tarde na formação do condado Portucalense.


UM LEGADO PROFUNDO E DURADOURO

O período islâmico deixou marcas indeléveis na cultura portuguesa:

  • Toponímia (Algarve, Almada, Albufeira, Alcácer, Alfama)

  • Léxico agrícola, matemático e científico

  • Arquitetura e urbanismo adaptados ao clima mediterrânico

  • Técnicas de irrigação

  • Sistemas de pesos e medidas

  • Gastronomia (amêndoas, arroz, especiarias)

E, acima de tudo, uma integração secular entre povos de origens distintas.

Referências Bibliográficas

 

ALMEIDA, Fortunato de. História de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922.
BARREIROS, José. Afonso Henriques: A fundação de Portugal. Lisboa: Temas e Debates, 2016.
COELHO, Maria Helena da Cruz. D. Afonso Henriques. Lisboa: Círculo de Leitores, 2007.
MATTOSO, José. Identificação de um País: Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096–1325. 3. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. História de Portugal. 13. ed. Lisboa: Palas Editores, 1998.
SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000.

 


A RNLP - Rádio Nova da Língua Portuguesa

- é feita por lusófonos de várias origens.

Fique sintonizado com a nossa emissão,

instalando os nossos aplicativos:

 

Web APP: Aplicação para o seu Browser:

Android APP: Para Instalar o aplicativo no celular / telemóvel Android:

Onde quer que você esteja!!!

Somos 280 milhões e a quinta língua mais falada no mundo

 

Comentários

Chat Online