A Madeira e os Açores são hoje reconhecidos tanto pela sua beleza natural como pelo papel estratégico que desempenharam ao longo de mais de seis séculos na história atlântica. No entanto, a longa história destes arquipélagos remonta muito antes da chegada dos navegadores portugueses, começando com episódios geológicos que moldaram montanhas, fajãs, caldeiras e plataformas oceânicas ao longo de milhões de anos. Este texto propõe-se integrar as várias dimensões — natural, humana, social, económica e política — numa narrativa unificada, permitindo ao leitor compreender como estas ilhas, outrora ermas, se tornaram espaços densamente significativos no quadro da história global.
Nota Introdutória à Série “Povos soberanos Lusófonos”
Os textos que compõem esta série são fruto de um extenso trabalho de pesquisa, reunindo informações de diversas fontes — algumas históricas e academicamente reconhecidas, outras baseadas em tradições orais que atravessaram gerações. O nosso objetivo é o de trazer a público uma leitura viva e acessível sobre personagens, acontecimentos e civilizações que marcaram a história, tentando equilibrar o rigor científico com o respeito à memória ancestral.
Sabemos, no entanto, que a História nem sempre é exata: pode conter lacunas, interpretações distintas e até equívocos inevitáveis. É possível que certas passagens despertem sensibilidades ou contrariem visões patrióticas. Por isso, convidamos o leitor a caminhar conosco neste processo de redescoberta — e, sempre que encontrar algo que julgue impreciso, fora de contexto ou inapropriado, que nos diga. O diálogo é parte essencial desta jornada de conhecimento e reconstrução da nossa memória coletiva.

Origens Geológicas: A Construção do Atlântico Insular
Madeira: O colosso vulcânico do Atlântico oriental
A Madeira formou-se há cerca de 5 milhões de anos, resultado de um ponto quente vulcânico que gerou sucessivas erupções submarinas. Estudos geológicos descrevem três ciclos eruptivos principais, com longos períodos de erosão entre eles. A imponência actual da ilha, marcada por picos como o Ruivo ou o Areeiro, é parte de um edifício vulcânico colossal que se eleva cerca de 6 000 metros da crista oceânica até à superfície.
As principais estruturas montanhosas da Madeira são remanescentes de colapsos e erosões naturais típicos de vulcanismo de ilha oceânica. Alguns geólogos sugerem fases eruptivas residuais mais tardias na costa oriental, mas sem consenso.
Açores: Um arquipélago sobre três placas tectónicas
Diferentemente da Madeira, o arquipélago dos Açores resulta da interação entre as placas Euro-asiática, Norte-Americana e Africana. É um dos poucos lugares do mundo onde confluem dorsal oceânica, hotspots e falhas transformantes, explicando a diversidade geológica entre ilhas.
As ilhas mais jovens — como o Pico — continuam a manifestar vulcanismo activo; o seu último episódio significativo ocorreu no Faial em 1957–58, na formação do Vulcão dos Capelinhos.
A formação das ilhas é contínua e documentada; há registos históricos detalhados de erupções desde o século XV. Contudo, há narrativas populares que mencionam “montes que nasceram do mar em poucas noites”, eco de erupções súbitas observadas pelas populações.

Fauna e Flora: Ecossistemas Isolados, Evoluções Distintas
Madeira: A Laurissilva como relicto vivo
A floresta Laurissilva da Madeira — hoje Património Mundial — representa um dos últimos vestígios de um ecossistema que cobriu grande parte do Mediterrâneo antes das glaciações. A sua preservação deve-se ao isolamento geográfico.
Açores: Uma biodiversidade mais jovem
Nos Açores, a flora autóctone é menos diversa, resultado da idade geológica inferior e da distância maior ao continente; no entanto, as espécies endémicas, como o priôlo em São Miguel, são de grande valor científico.
Estudos genéticos sugerem que algumas espécies poderão ter chegado antes da presença humana, transportadas por aves migratórias, ventos ou balsas naturais.

Primeiros Habitantes: Silêncios e Evidências
Madeira e Açores como ilhas sem povoamento prévio?
A tradição historiográfica portuguesa defendeu, durante séculos, que ambos os arquipélagos estavam desabitados quando os portugueses os “descobriram”.
Contudo, investigações recentes questionam esta certeza.
Madeira:
Achados arqueológicos em Machico e Porto Santo sugerem, de forma ainda discutida, presença humana pré-portuguesa, possivelmente de origem árabe ou mediterrânica.
Açores:
Estudos paleoambientais (análise de pólen, esteróis fecais e carvão) indicam intervenção humana anterior ao século XV, talvez de navegadores nórdicos ou povos mediterrânicos.
Hipótese: A presença humana prévia, se existiu, parece ter sido temporária e não consolidou comunidades permanentes.
Facto consolidado: Não há registo de sociedades estabelecidas, agricultura duradoura ou estruturas políticas antes da chegada portuguesa.
A Chegada Portuguesa e as Primeiras Comunidades
Colonização da Madeira (século XV)
A partir de 1419, sob o comando de João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, inicia-se o povoamento organizado. A Madeira torna-se rapidamente um laboratório de expansão económica:
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introdução da cana-de-açúcar
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exploração florestal
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primeiros engenhos e sistemas de levadas [canais de irrigação que transportam água das zonas chuvosas (geralmente no norte da ilha da Madeira) para as zonas mais secas do sul, para a agricultura e outros usos]
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mão-de-obra escrava vinda do Norte de África e, mais tarde, da costa atlântica africana
Colonização dos Açores
O povoamento açoriano, iniciado cerca de 1430, foi mais gradual. Os colonos eram maioritariamente:
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portugueses do norte e centro
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flamengos sob influência borgonhesa
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minorias judaicas e cristãs-novas
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comunidades africanas escravizadas ou libertas
A economia insular orientou-se para:

Estruturas Sociais, Políticas e Tecnológicas
Sociedades insulares em construção
As ilhas desenvolveram hierarquias sociais próprias, mas menos rígidas do que no continente, devido à necessidade de cooperação comunitária em ambientes isolados e por vezes hostis.
Comparação com outros arquipélagos
Ao contrário das Canárias, colonizadas sobre populações indígenas guanches, Madeira e Açores construíram-se sobre “territórios vazios”, permitindo modelos sociais assentes exclusivamente em populações migrantes.
Conflitos, Resistências e Mudanças Globais
Ambos os arquipélagos enfrentaram:
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ataques corsários (séculos XVI–XVIII)
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impacto profundo da expulsão dos cristãos-novos
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crises sísmicas e erupções
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partilha desigual de terras por capitães-donatários
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dinâmica de emigração massiva entre os séculos XIX e XX
As rotas atlânticas transformaram Madeira e Açores em pontos estratégicos militares, comerciais e diplomáticos — posição reforçada durante as grandes guerras mundiais.

Contemporaneidade: Autonomia, Economia e Identidade
Autonomia política
Com o fim do regime colonial e a transição democrática (1974–1976), ambos os arquipélagos tornaram-se Regiões Autónomas de Portugal, com governo próprio e competências alargadas.
Economias modernas
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Madeira: turismo, serviços financeiros, agricultura especializada.
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Açores: agropecuária, lacticínios, turismo sustentável, energias renováveis.
Cultura, diáspora e identidade
A diáspora madeirense e açoriana — espalhada do Brasil aos EUA, do Havai à Venezuela — constitui hoje parte central da identidade de ambos os arquipélagos.
A Madeira e os Açores sintetizam, de forma singular, a interligação entre geologia, clima, história humana e transformação socioeconómica ao longo de milhões de anos. De edifícios vulcânicos gigantes erguidos no Atlântico profundo surgiram sociedades complexas, resilientes e culturalmente ricas, cuja identidade continua a ser moldada pelas forças da natureza, das migrações e da história global.
Referências Bibliográficas
(Seleção de obras consultadas para este texto)
CARREIRA, António. A Descoberta da Madeira e a colonização atlântica. Lisboa: Presença, 1998.
FERREIRA, Nuno. Geodinâmica dos Açores. Ponta Delgada: Univ. dos Açores, 2011.
FRUTUOSO, Gaspar. Saudades da Terra. 1586–1590 (ed. moderna).
MACHADO, José. História da Madeira: Do descobrimento à contemporaneidade. Funchal: CEHA, 2010.
MADAN, Falconer. The Discovery of the Madeira Islands. Oxford: Clarendon Press, 1901.
MITCHELL, P. et al. "Evidence for pre-Portuguese contact in the Azores". PNAS, 2021.
MORAIS, Carlos. História dos Açores. Lisboa: Aletheia, 2015.
RODRIGUES, António. Geologia das Ilhas Atlânticas Portuguesas. Porto: Publ. Cient., 2008.
SERRA, João. A colonização atlântica e os primeiros povoadores açorianos. Angra do Heroísmo: Inst. Açoriano de Cultura, 2003.
VIEIRA, Alberto. Economia e Sociedade da Madeira. Funchal: DRAC, 2012.
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