Nascidas de forças geológicas violentas, povoadas tardiamente por humanos e moldadas por encontros civilizacionais intensos, as ilhas tornaram-se laboratório de biodiversidade, plataforma estratégica do comércio atlântico, síntese cultural e berço de uma das diásporas mais influentes do planeta.
O objetivo deste artigo é traçar a sua trajetória — científica, histórica e humana — distinguindo sempre fato comprovado, hipótese científica e tradição oral.

Origens geológicas do arquipélago
Fato científico comprovado:
Cabo Verde nasceu de um conjunto de vulcões formados por um hotspot mantélico [ponto de origem fixo no manto da Terra onde uma coluna de rocha derretida (pluma) sobe, causando vulcanismo na superfície, mesmo longe das fronteiras das placas tectónicas, ou pluma térmica, cuja atividade começou há cerca de 25 a 30 milhões de anos] (Courtillot & Renne, 2003). Não se trata de uma extensão continental africana; é um arquipélago puramente oceânico, formado por acumulações de lava basáltica.
As ilhas apresentam idades diferentes:
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Santo Antão: ~7 milhões de anos
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Fogo: vulcanismo ativo (erupção mais recente: 2014–2015)
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Maio e Sal: formação mais antiga, alguns milhões de anos acima das outras
Essa diversidade cronológica explica também a diversidade topográfica: ilhas montanhosas, outras planas, algumas com crateras intactas.
Os solos vulcânicos férteis e as bacias de condensação de nevoeiros foram mais tarde essenciais à sobrevivência humana.
Evolução da fauna e flora: isolamento e criatividade ecológica
Fato científico comprovado:
Antes da chegada humana, Cabo Verde era um ecossistema isolado, com flora e fauna colonizadas naturalmente por vento, aves, correntes oceânicas e eventos aleatórios — o mesmo padrão observado em outros arquipélagos oceânicos.
A fauna original incluía:
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aves marinhas e terrestres (com várias espécies endémicas, como a cotovia-do-mato, Alauda razae)
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répteis, principalmente lagartos
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ausência total de mamíferos terrestres
A flora incluía dragoeiros, tamarizeiros, espécies xerófitas e plantas adaptadas ao clima árido.
Hipótese científica:
Algumas espécies extintas podem ter existido originalmente, mas não há fósseis suficientes para determinar a biodiversidade pré-humana completa (Hazevoet, 1995).

Antes dos humanos: mito e ciência
Fato científico comprovado:
Não há evidências arqueológicas ou históricas que indiquem presença humana nas ilhas antes da chegada portuguesa no século XV.
Tradição oral e hipóteses:
Alguns relatos africanos posteriores mencionam pescadores ou navegadores do Sahel que teriam chegado às ilhas. No entanto, não há evidência material, sendo isso hoje classificado como tradição oral, não ciência.

Descoberta e povoamento: a criação de uma sociedade nova (séculos XV–XVI)
Cabo Verde foi oficialmente registado por navegadores portugueses entre 1460 e 1462. O arquipélago é, assim, um dos poucos territórios africanos sem população autóctone, povoado diretamente pelos europeus durante a expansão atlântica.
Quem veio primeiro?
Os primeiros habitantes foram:
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portugueses (nobres, degredados, militares e contratados)
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africanos escravizados, sobretudo da Senegâmbia e do Golfo da Guiné
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alguns judeus sefarditas convertidos (cristãos-novos)
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mestiços nascidos nas ilhas (que formariam o grupo crioulo inicial)
A cidade de Ribeira Grande
Ribeira Grande (hoje Cidade Velha) tornou-se em poucos anos:
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o primeiro grande entreposto europeu na África subsaariana
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o maior mercado de escravos da costa atlântica durante o século XVI
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ponto estratégico para abastecimento de navios e para o comércio entre Europa, África e América
Comparação histórica:
Enquanto reinos como Mali, Jolof, Benim ou Kongo organizavam estruturas políticas complexas, Cabo Verde emergia como espaço híbrido, de administração europeia mas população maioritariamente africana.

A sociedade crioula e a matriz cultural cabo-verdiana
O encontro entre europeus e africanos deu origem a uma sociedade nova, marcada por:
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língua crioula (kriolu)
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práticas culturais híbridas
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novas identidades sociais (forros, ladinos, mestiços, escravizados)
Fato: No século XVI, Cabo Verde possuía a maior população mestiça do império português (Carreira, 1972).
Migrações e mobilidades: o motor da história cabo-verdiana
A história do arquipélago é marcada por migrações constantes, internas e externas:
Migrações internas (séculos XV–XIX)
Carência de água, secas cíclicas e desigualdades coloniais geraram deslocamentos entre ilhas, especialmente para Santiago, Fogo e Santo Antão.
Migrações externas (século XIX–XX)
Causas estruturais:
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secas prolongadas (algumas devastadoras, como as de 1831–1833, 1863–1866 e 1947–1948)
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crises agrícolas
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pobreza generalizada
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economia colonial rígida
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deportações políticas (ex.: cabo-verdianos enviados para São Tomé como contratados)
Efeitos:
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formação de diásporas significativas nos EUA, Portugal, Angola, Senegal, São Tomé e Brasil
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envio de remessas económicas, fundamentais para a subsistência familiar
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criação de redes de mobilidade atlântica pioneiras em África
Hoje, estima-se que haja mais cabo-verdianos fora do que dentro do país.
Resistências, personagens marcantes e episódios-chave
Corsários e defesas militares
Ribeira Grande foi repetidamente atacada, sobretudo por corsários ingleses e franceses. O ataque de Francis Drake em 1585 é um dos mais documentados (Carreira, 1972).
Lutas contra a escravatura
A elite crioula de Santiago desenvolveu resistências internas, algumas armadas. Muitas não deixaram documentação, sendo conhecidas apenas por tradição oral.
Intelectuais, líderes e revolucionários
No século XX destacam-se:
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Amílcar Cabral, líder máximo da luta anticolonial
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Aristides Pereira, primeiro presidente
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Baltasar Lopes, fundador da revista Claridade e um dos pais da literatura cabo-verdiana
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Manuel Lopes e Jorge Barbosa, grandes vozes da cultura crioula
A partir de Cabral, Cabo Verde entra definitivamente na história política mundial.
Economia, agricultura e tecnologia ao longo dos séculos
Período colonial (séculos XV–XIX)
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comércio atlântico (especialmente escravos)
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produção agrícola limitada (milho, feijão, cana em algumas ilhas)
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pecuária de subsistência
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forte dependência alimentar externa
Século XX
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diversificação económica
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crescimento do setor público
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migrações como estratégia económica
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reforço das ligações com a Europa e EUA
Atualidade
Cabo Verde aposta em:
Cultura: síntese atlântica e potência na diáspora
A cultura cabo-verdiana é marcada pela:
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música universal (morna, coladeira, funaná, batuque)
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gastronomia (cachupa, grogue)
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literatura de referência no espaço lusófono
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valores comunitários e familiares fortes
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bilinguismo natural (crioulo e português)
A diáspora cabo-verdiana é hoje:
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economicamente influente
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culturalmente relevante (especialmente nos EUA e Europa)
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agente ativo de investimento, remessas e inovação
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símbolo de mobilidade, resiliência e adaptação
Caminho para a nação moderna
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Luta anticolonial partilhada com a Guiné-Bissau
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Independência: 5 de julho de 1975
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Estabilidade política prolongada
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Transição pacífica para multipartidarismo em 1991
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Reconhecimento internacional como uma das democracias mais estáveis de África
Ligação estratégica contemporânea
Hoje, Cabo Verde é um parceiro chave em:
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segurança marítima no Atlântico
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cooperação norte-sul
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relações lusófonas
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rota aérea e marítima transatlântica
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energia e telecomunicações
O país construiu uma imagem de estabilidade, cultura vibrante e abertura internacional — um legado raro, considerando a dureza da sua história ambiental e económica.

Conclusão
Cabo Verde é o resultado de uma combinação singular: ilhas nascidas da lava, flora e fauna moldadas pelo isolamento, povoamento tardio, encontros civilizacionais intensos, resiliência às secas, criatividade cultural e migrações constantes que espalharam a cabo-verdianidade pelo mundo. Da Ribeira Grande à Cidade da Praia, do Fogo à diáspora em Boston, o arquipélago tornou-se símbolo de adaptação, misturas e reinvenção — uma lição histórica para o Atlântico e para o mundo.
Referências Bibliográficas
BANDEIRA, A. A. História Económica de Cabo Verde. Lisboa: Colibri, 2010.
BARROS, José María. História Geral de Cabo Verde. Praia: ICL, 2014.
CARREIRA, A. Cabo Verde: Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata. Lisboa: Ulmeiro, 1972.
COURTILLOT, V.; RENNE, P. “On the ages of flood basalt events”. Comptes Rendus Geoscience, 335(1), 113–140, 2003.
HAZEVOET, C. The Birds of the Cape Verde Islands. BOU: London, 1995.
LOPES, B.; LOPES, M. Cultura Cabo-verdiana Contemporânea. Mindelo: Edições do Mindelo, 2006.
RODRIGUES, J. Cabo Verde: Da Descoberta à Independência. Lisboa: Vega, 1998.
SEMEDO, J.; TURANO, A. História Ambiental de Cabo Verde. Praia: Uni-CV Press, 2015.
UNESCO. Atlantic Islands Biodiversity Reports. Paris: UNESCO Press, 2018.
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