Offline
DÊ O PLAY
VIII - Guiné-Bissau: Das Antigas Civilizações à Construção de uma Nação
Entre a História, a Tradição e o Futuro
Por António Cunha
Publicado em 17/11/2025 08:30
LUSOFONIA: História e Personagens

 

A história da Guiné-Bissau é um mosaico de civilizações, reinos e povos que moldaram uma identidade rica e diversa. Muito antes das fronteiras coloniais, a região era um espaço de intensa mobilidade, trocas comerciais e convivência cultural entre grupos bantos, mandingas, fulas, balantas, manjacos, bijagós e papéis. Cada um desses povos trouxe consigo tradições, crenças, técnicas e modos de organização social que, ao longo dos séculos, se entrelaçaram, resistiram e adaptaram-se às transformações regionais e globais.

Este texto propõe-se revisitar, de forma científica, mas acessível, as histórias civilizacionais, personagens marcantes e acontecimentos impactantes que moldaram o que hoje conhecemos como o território da Guiné-Bissau — distinguindo cuidadosamente o que é fato histórico comprovado, o que constitui hipótese interpretativa e o que pertence ao domínio da tradição oral e do mito fundador.


Nota Introdutória à Série “Povos soberanos de África”

Os textos que compõem esta série são fruto de um extenso trabalho de pesquisa, reunindo informações de diversas fontes — algumas históricas e academicamente reconhecidas, outras baseadas em tradições orais que atravessaram gerações. O nosso objetivo é o de trazer a público uma leitura viva e acessível sobre personagens, acontecimentos e civilizações africanas que marcaram a história, tentando equilibrar o rigor científico com o respeito à memória ancestral.

Sabemos, no entanto, que a História nem sempre é exata: pode conter lacunas, interpretações distintas e até equívocos inevitáveis. É possível que certas passagens despertem sensibilidades ou contrariem visões patrióticas. Por isso, convidamos o leitor a caminhar conosco neste processo de redescoberta — e, sempre que encontrar algo que julgue impreciso, fora de contexto ou inapropriado, que nos diga. O diálogo é parte essencial desta jornada de conhecimento e reconstrução da nossa memória coletiva. 


 

As origens e as migrações pré-históricas

Os estudos arqueológicos e antropológicos indicam que o atual território da Guiné-Bissau foi povoado desde tempos remotos por grupos de caçadores-coletores, posteriormente substituídos ou assimilados por comunidades agrícolas vindas do interior do continente, sobretudo das regiões do alto Níger e do Senegal oriental (Davidson, 1998).

As primeiras migrações bantas não chegaram em massa à Guiné-Bissau, mas a influência cultural e linguística desses povos é percebida em algumas tradições agrícolas e na metalurgia. As evidências arqueológicas sugerem que, desde o primeiro milénio da era comum, havia comunidades organizadas em torno de aldeias agrícolas estáveis, com domínio da produção de arroz (sobretudo nas zonas de várzea), do ferro artesanal e da pesca, práticas que formaram a base da economia e da cultura guineense.

A tradição oral, particularmente entre os balantas e os bijagós, fala de antepassados que “saíram da terra” ou “vieram das águas”, narrativas simbólicas que representam processos de ocupação e adaptação ecológica — e que a ciência contemporânea interpreta como memórias coletivas dos ciclos migratórios e ambientais que moldaram o território.


Os primeiros reinos e estruturas políticas

A partir do século XIII, com a expansão dos mandingas e do Império do Mali, a Guiné-Bissau entrou numa rede política e comercial mais ampla. Povos mandingas instalaram-se em regiões do leste (como Gabú e Kaabu), introduzindo sistemas hierárquicos centralizados, o islamismo e uma forte tradição guerreira.

O Reino de Kaabu, um dos mais importantes da região, é documentado em fontes históricas e nas tradições orais dos povos fula e mandinga. Segundo a tradição, Kaabu foi fundado por Tiramakhan Traoré, general de Soundiata Keita, o lendário fundador do Império do Mali — embora esta ligação ainda seja considerada hipotética por parte da historiografia (Gomez, 1992).

Kaabu tornou-se uma federação de pequenas chefaturas mandingas e locais, governadas por aristocratas guerreiros. Era um centro de produção agrícola (milho e arroz) e comércio de escravos, sal e ferro, ligado às rotas transaarianas.

Ao mesmo tempo, nas zonas costeiras, povos como os papéis, manjacos e bijagós mantinham sociedades descentralizadas, com sistemas de poder baseados na linhagem familiar e em assembleias comunitárias, mostrando uma diversidade política notável em comparação com os modelos centralizados africanos e europeus da época.


Contato com os portugueses e o impacto do comércio atlântico

Os primeiros contatos documentados entre europeus e povos da Guiné-Bissau datam de 1446, com as expedições portuguesas de Nuno Tristão e Alvise Cadamosto. Os relatos desses navegadores, embora eurocêntricos e frequentemente imprecisos, descrevem populações agrícolas prósperas, organizadas e com domínio das águas e da metalurgia.

Nos séculos seguintes, a região integrou-se no comércio atlântico, inicialmente com trocas comerciais legítimas (tecidos, marfim, cera, ouro) e, mais tarde, com o tráfico de escravos. O porto de Cacheu e a ilha de Bolama tornaram-se entrepostos de importância estratégica, tanto para os portugueses como para comerciantes holandeses, ingleses e franceses.

A economia tradicional foi profundamente abalada, e muitos reinos africanos da região — incluindo Kaabu — foram arrastados para as redes de escravização, ora como vítimas, ora como intermediários.

Do ponto de vista comparativo, enquanto os portugueses consolidavam o seu império ultramarino com apoio de tecnologia naval e armas de fogo, os povos da Guiné-Bissau mantinham superioridade em conhecimento ambiental, agricultura e adaptação ecológica. Os sistemas de diques agrícolas dos balantas, ainda hoje visíveis, são considerados uma das mais sofisticadas formas de cultivo tradicional da África Ocidental (Carney, 2001).


Personagens e acontecimentos marcantes

Além de Tiramakhan Traoré, a história guineense é marcada por figuras lendárias e reais como Kandia Kouyaté, símbolo das tradições griot; Biafada Demba, guerreiro associado à resistência local; e, já no século XX, Amílcar Cabral, engenheiro agrónomo e líder do movimento de libertação nacional.

O colapso do Reino de Kaabu, em 1867, após a batalha de Kansala, marcou o fim de uma era e o início de uma nova forma de resistência — agora contra o domínio colonial europeu.

No século XX, a luta de libertação, liderada pelo PAIGC de Amílcar Cabral, culminou em 1973 com a proclamação unilateral da independência, reconhecida internacionalmente após a Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974.


Desenvolvimento social, económico e tecnológico

Historicamente, a Guiné-Bissau manteve uma economia mista, baseada na agricultura de subsistência, pesca artesanal e pequeno comércio inter-regional. A colonização portuguesa limitou a industrialização e concentrou-se na extração de recursos, perpetuando a dependência económica.

Comparativamente aos vizinhos — como o Senegal, mais urbanizado —, a Guiné-Bissau manteve uma estrutura mais rural e comunitária. No entanto, o seu capital cultural e ecológico é notável: as técnicas agrícolas tradicionais continuam a inspirar estudos modernos sobre sustentabilidade e adaptação climática (Havik, 2004).


Desafios contemporâneos e o futuro

Apesar das riquezas naturais e culturais, a Guiné-Bissau enfrenta desafios profundos: instabilidade política, fragilidade institucional, desigualdade social e dependência económica externa. Contudo, a história demonstra que o povo guineense é resiliente, criativo e profundamente consciente da sua herança coletiva.

O futuro da nação passa pela valorização da sua diversidade étnica, do conhecimento tradicional e do diálogo entre ciência e cultura, transformando o passado em fonte de sabedoria e o presente em espaço de reconstrução.


Conclusão

A história da Guiné-Bissau não é apenas um relato de resistências e rupturas, mas um testemunho da força civilizacional de um povo que, ao longo de milénios, soube transformar adversidades em identidade. Entre fatos históricos, hipóteses científicas e tradições orais, emerge uma nação cuja memória ainda pulsa nas canções, nos ritos e nas palavras dos griots — guardiões do tempo e da alma guineense.


Referências Bibliográficas

 

  • CARNEY, Judith. Black Rice: The African Origins of Rice Cultivation in the Americas. Harvard University Press, 2001.

  • DAVIDSON, Basil. West Africa Before the Colonial Era: A History to 1850. Longman, 1998.

  • GOMEZ, Michael A. African Dominion: A New History of Empire in Early and Medieval West Africa. Princeton University Press, 1992.

  • HAVIK, Philip. Silences and Soundbites: The Gendered Dynamics of Trade and Brokerage in the Pre-colonial Guinea Bissau Region. Lit Verlag, 2004.

  • MANTHORPE, Jonathan. Forbidden Nation: A History of Guinea-Bissau. Toronto: University Press, 2006.

  • THOMAS, Roger. West African Resistance: The Military Response to Colonial Occupation. London: Oxford University Press, 1987.


A RNLP - Rádio Nova da Língua Portuguesa

- é feita por lusófonos de várias origens.

Fique sintonizado com a nossa emissão,

instalando os nossos aplicativos:

 

Web APP: Aplicação para o seu Browser:

Android APP: Para Instalar o aplicativo no celular / telemóvel Android:

Onde quer que você esteja!!!

Somos 280 milhões e a quinta língua mais falada no mundo


Comentários

Chat Online