Na manhã do 1º de novembro de 1755, dia de Todos os Santos, Lisboa acordou envolta no perfume das velas e no som dos sinos. Era uma das cidades mais ricas e movimentadas da Europa, o coração de um império que se estendia do Atlântico leste, passando pelo Brasil, alguns locais em África e à Ásia. Em poucos minutos, esse esplendor se converteria em pó, fogo e medo.
Nota do autor — Série Especial sobre o terramoto de 1755 e as suas implicações
Os cinco textos que compõem esta série são o resultado de pesquisas históricas realizadas com o intuito de nos aproximar de um dos períodos mais fascinantes e transformadores de um evento com consequências para a história universal: o Terramoto de 1755 e o legado do Marquês de Pombal.
Apesar do rigor na apuração, é possível que existam imprecisões, lacunas ou interpretações passíveis de debate, fruto da complexidade dos fatos e das diferentes leituras que a História permite.
Se, ao ler, encontrar informações que lhe pareçam incorretas, descontextualizadas ou incompletas, convidamo-lo a entrar em contacto connosco.
A História constrói-se no diálogo — e este projeto nasce justamente do desejo de pensar com espírito crítico e mente aberta.
Porque compreender o passado é o primeiro passo para reconstruir o futuro.

A cidade de Lisboa antes da tragédia
Lisboa era então uma cidade de contrastes: ruas estreitas e tortuosas, becos medievais e igrejas barrocas que se amontoavam sobre as colinas do Tejo. O centro da Baixa era um labirinto de vielas sem planejamento, onde comerciantes, marinheiros e nobres conviviam envolvidos no barulho das carruagens e do mau cheiro.
As margens do rio fervilhavam de atividade: o Cais do Sodré e a Ribeira das Naus eram o coração económico da capital. Armazéns cheios de mercadorias vindas de todos os pontos do império (Angola, Brasil, China, India, etc.) sustentavam o luxo dos palácios da cidade alta.
Lisboa era uma potência comercial, mas também era religiosa. Contudo - talvez por ironia do destino - foi justamente no Dia de Todos os Santos, quando as igrejas estavam apinhadas de fieis, que o cataclismo se abateu sobre a toda a região sul de Portugal.
O instante em que a terra ribombou
Pouco depois das 9h40 da manhã, um estrondo profundo ecoou sob o Tejo. Paredes estremeceram, sinos tocaram desordenadamente. O chão abriu-se em várias zonas da cidade, engolindo casas inteiras. O terramoto principal, estimado entre 8,5 e 9 graus na Escala de Richter (Magnitude), durou cerca de seis minutos — talvez uma eternidade para quem o vivenciou.
Testemunhas relataram que o "Rossio ondulava como o mar", e o Convento do Carmo, orgulho gótico da cidade, ruiu com centenas de fiéis no seu interior. As igrejas, cheias por causa da missa, tornaram-se armadilhas de pedra e fogo.
Do rio, os marinheiros viram a cidade se contorcer, e logo depois, as águas do Tejo recuaram subitamente — um presságio terrível. Muitos correram para o porto, acreditando que ali estariam a salvo. Poucos minutos depois, três ondas gigantes, algumas com mais de 10 metros de altura, avançaram sobre o cais, destruindo navios e arrastando pessoas, animais e destroços.

O inferno após o abalo
Enquanto os sobreviventes buscavam abrigo, incêndios se espalharam pela cidade, alimentados sobretudo pelas velas acesas nas igrejas. O incêndio durou cerca de cinco dias, transformando Lisboa num cenário apocalíptico.
Dos cerca de 275 mil habitantes, estima-se que entre 30 e 60 mil tenham morrido — números que ainda hoje variam segundo as fontes.
Os relatos de navios britânicos ancorados ao largo de Lisboa descrevem o mar “fervendo” e uma nuvem de poeira cobrindo o sol. Um capitão francês escreveu:
“A cidade desapareceu diante dos nossos olhos. O que restou parecia o fim do mundo.”
Mas o impacto não se limitou à capital. O tremor foi sentido em todo o país: igrejas desabaram no Alentejo, pontes ruíram em Coimbra e em Setúbal o mar invadiu as ruas. No Algarve, cidades como Lagos e Portimão foram quase arrasadas pelo tsunami.
Um abalo que percorreu o mundo
As ondas sísmicas atravessaram o Atlântico, atingindo as Antilhas e o Brasil, onde foram observadas variações no nível do mar no Rio de Janeiro e na Baía de Todos os Santos. O tremor também foi sentido no norte da África, devastando a cidade marroquina de Fez.
Cientistas modernos sugerem que o epicentro se localizou a sudoeste do Cabo de São Vicente, numa falha submarina profunda associada à placa tectónica africana, que ainda hoje se move lentamente sob a placa euroasiática.
Esse movimento de compressão entre as placas é o mesmo responsável por outros abalos na região ibérica e, segundo estudos recentes, pode gerar novos grandes sismos no futuro.
O nascimento da ciência moderna dos sismos
O terramoto de Lisboa foi o primeiro desastre natural amplamente estudado de forma científica. O Marquês de Pombal, primeiro-ministro português de então, enviou questionários detalhados a todas as regiões do país, perguntando:
- “Quantos minutos durou o abalo?”
- “Para que lado caíram as torres das igrejas?”
- “Ouviu-se ruído subterrâneo antes do tremor?”
Essas respostas deram origem ao primeiro estudo sistemático de sismologia do mundo, abrindo caminho para o entendimento moderno dos terremotos.
Reconstruir para renascer
Com Lisboa em ruínas, o Marquês de Pombal assumiu o comando da reconstrução. A sua frase célebre — “Agora, enterrem os mortos e cuidem dos vivos” — sintetizou a urgência e a racionalidade com que enfrentou o caos.
Sob a sua gestão, nasceu a Baixa Pombalina, o primeiro projeto urbano moderno da Europa, com ruas largas, quadras geométricas e edifícios antisísmicos, baseados em estruturas de madeira cruzada conhecidas hoje pelo nome de “gaiola pombalina”.
Lisboa renasceu racional e simétrica — uma cidade iluminista sobre as cinzas de uma cidade medieval.
As feridas do império
O impacto económico foi devastador. O ouro do Brasil, que sustentava o luxo lisboeta de então, foi direcionado para a reconstrução. O império português, já fragilizado, perdeu parte de sua capacidade de projeção.
Além disso, o terramoto abalou a fé religiosa da Europa. Filósofos como Voltaire questionaram como um Deus justo permitiria tamanha destruição num dia santo. A tragédia inspirou reflexões que marcaram o Iluminismo, alimentando o pensamento científico e a dúvida filosófica.
O legado que ainda treme
Hoje, o terramoto de 1755 é mais do que uma lembrança — é um símbolo da capacidade humana de se reinventar. Ele mudou não apenas Lisboa, mas o modo como o mundo entende a natureza, a ciência e o próprio destino.
Como escreveu o historiador francês Nicolas Baslez:
“Lisboa não foi apenas destruída; ela foi reconstruída como metáfora da razão sobre o caos.”
O dia em números
- Data: 1º de novembro de 1755 (Dia de Todos os Santos)
- Hora aproximada: 9h40 da manhã
- Magnitude estimada: 8,5 a 9,0
- Duração do tremor principal: 5 a 7 minutos
- Mortos estimados: entre 30 mil e 60 mil
- Ondas do tsunami: até 10 metros de altura
- Tempo de incêndio: cerca de 5 dias
- Epicentro provável: sudoeste do Cabo de São Vicente
Quando Lisboa tremeu, o mundo tremeu junto
- Marrocos: cidades de Fez e Meknès destruídas, com milhares de mortos.
- Espanha: forte abalo em Sevilha e Cádis, onde o mar também recuou.
- Brasil: registo de ondas anômalas nas costas da Bahia e do Rio de Janeiro.
- Caraíbas / Caribe: maré oscilante observada em Barbados e Martinica.
- O terramoto foi sentido até na Finlândia, Marrocos e nas Caraíbas.
- Relatos vindos da Irlanda registam o movimento das águas.
- Para os filósofos europeus — como Voltaire, Rousseau e Kant — o desastre tornou-se um laboratório moral e científico.
- O mundo descobria, pela primeira vez, que a natureza podia ser mais poderosa do que a fé.
O inferno em três atos: o sismo, o fogo e o mar
Primeiro ato: o tremor colossal que durou cerca de seis minutos.
As torres desabaram, igrejas ruíram sobre fiéis em missa, o chão abriu-se em fendas.
Segundo ato: o incêndio.
As velas acesas para os mortos e os santos atearam fogo às ruínas. O vento espalhou chamas durante cinco dias.
Terceiro ato: o mar.
Os que fugiram para o porto viram o Tejo recuar — e, minutos depois, um tsunami colossal engolir a cidade baixa.
Navios foram arremessados ao cais como brinquedos. A bordo, marinheiros registraram o horror: “O mar retirou-se e voltou com fúria diabólica”.
INFRAESTRUTURA DO CAOS
O que Lisboa perdeu em 1755:
- 85% das construções destruídas ou incendiadas
- 12 mil casas e 35 igrejas arrasadas
- 60 mil mortos (estimativa)
- O centro político e econômico do império, em ruínas
O legado científico
- Marquês de Pombal criou o primeiro questionário sísmico da história.
- Nasceu a “engenharia antissísmica” com as construções da Baixa Pombalina.
- O evento inspirou o nascimento da sismologia moderna, séculos antes da invenção do sismógrafo.
- Influenciou o pensamento filosófico europeu, de Voltaire a Kant, sobre o papel da razão e da natureza.
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